Cartas

Carta 36

novembro | 2021

1. O que está acontecendo na China?

Nos últimos anos temos acompanhado um período de profundas transformações na China com significativas mudanças de política econômica e aumento de intervenção do Estado na economia. Como veremos ao longo desta carta, a reação das lideranças políticas aos importantes acontecimentos globais dos últimos anos é o que parece estar por de trás desta dinâmica. A intensidade das mudanças recentes também tem a ver com o fato de que teremos em 2022 um calendário político denso, culminando com o vigésimo congresso do Partido Comunista Chinês (PCC) agendado para outubro/novembro. É importante notar que são nesses congressos que ocorrem as trocas das principais lideranças políticas como a cúpula de comando do Partido Comunista e os cargos de alto escalão na administração pública.
A China apareceu diversas vezes em nossas cartas anteriores. A Carta 8 de 2007 [1] trouxe o país como tema principal, tratando do seu gigantismo e emergência como potência econômica, inclusive destacando as questões históricas que moldaram a organização político-institucional e o modelo de desenvolvimento econômico da China. Naquela altura, já nos perguntávamos como as demais potências no Ocidente, principalmente os EUA, reagiriam à ascensão da China - potência com características e valores bastante distintos. No final da década passada tivemos a resposta mais contundente para essa pergunta com o início da disputa comercial entre EUA e China após a eleição de Donald Trump para a Casa Branca.

Outro tema frequente é a coexistência entre economia de mercado e ausência de liberdade política, o que é algo incomum na escala e magnitude praticadas na China. Não pretendemos aqui responder essa questão tão complexa, mas notamos que a tradição milenar da cultura chinesa está acostumada com a centralização do poder nas dinastias imperiais. O Confucionismo com sua ênfase no bem-estar do povo - que deveria ser o objetivo de um governador virtuoso - também ajuda explicar esse ponto.
A primeira parte desta carta fala sobre a China de hoje e faz algumas considerações importantes sobre como o país chegou no seu atual estágio de desenvolvimento. A partir disto, a segunda parte interpreta os principais eventos recentes, explicando slogans como “dual circulation” e “common prosperity” que aparecem cada vez mais no discurso das lideranças políticas.

A China de hoje e a trajetória percorrida
A China é um país cheio de contrastes e paradoxos e por isso muito difícil de enquadrar em classificações gerais. É um país desenvolvido ou emergente? É um sistema econômico capitalista ou socialista? Como pode se chamar República Popular da China se não é uma democracia com governantes eleitos pelo voto popular? Como pretende tornar a sua moeda uma divisa segura para transações internacionais mantendo controle de capitais?

De acordo com os dados do Banco Mundial, a China é a segunda maior economia do mundo medida em dólares americanos correntes, com um PIB de aproximadamente US$ 15 trilhões e já é a maior economia do mundo ajustando pela paridade do poder de compra. É considerado um país de renda média, com renda per capita em torno de US$ 10.500.

A China também é o país mais populoso do mundo com quase 1,450 bilhão de pessoas. Em maio deste ano, o país divulgou os resultados do censo populacional conduzido no final de 2020. O censo mostrou que a população está envelhecendo rapidamente e com baixa taxa de fertilidade: 264 milhões de pessoas tem mais de 60 anos, o que representa uma Alemanha a mais na década adicionada a este grupo. A taxa de fertilidade de 1,3 crianças por mulher é baixa e comparável à do Japão [2]. Vale destacar que estes números foram piores do que as autoridades esperavam após decretarem o fim da política de um filho único em 2015 e que os dados sugerem que provavelmente estamos muito próximos do pico populacional.

O sistema político não é o da democracia representativa e sim dominado por um partido único, o PCC, que tem 92 milhões de membros e este ano comemorou seu centenário. (A governança política na China foi tema da nossa Carta 12 [3]). O secretário geral do PCC e maior autoridade política é o Xi Jinping. Xi começou seu mandato em 2013 e no início de 2018 conseguiu eliminar o limite de dois mandatos, sinalizando que deve continuar no comando da nação após o término de seu segundo mandato no ano que vem, se tornando o líder mais longevo no cargo de secretário geral após Mao Tse Tung e Deng Xiaoping.

O gráfico abaixo mostra a taxa de crescimento do PIB chinês. A média entre 2000 e 2020 foi de um crescimento bastante elevado, de 8,7% por ano. Já dá para enxergar uma queda da taxa de crescimento e o FMI estima um crescimento próximo de 5% para os próximos anos.

O forte crescimento econômico após a década de 1980 se deu a partir do processo de “reforms and opening up” implementado por Deng Xiaoping, que assumiu o comando do PCC após a morte de Mao Tse Tung. Destacamos a abertura econômica com inserção nas cadeias de suprimento globais se beneficiando de um enorme contingente de mão de obra barata que migrava do campo para a cidade [4]. Com relação ao capitalismo e economia de mercado, Deng Xiaoping proferiu em meados da década 60 antes de assumir o poder, a célebre frase de que não importava a cor do gato, desde que caçasse rato - já adiantando o seu pragmatismo. A seguir, ele criou o conceito de socialismo com características chinesas, para caracterizar o modelo de desenvolvimento chinês. O modelo chinês atual também é conhecido por uma forma de Capitalismo de Estado [5]. Neste, apesar da existência de um setor privado vibrante, o papel principal como agente econômico é do Estado, que é proprietário de grandes empresas em setores considerados estratégicos. [6]

Ao longo do tempo e na medida em que a renda per capita aumenta, deve haver uma maior participação do consumo em comparação com investimentos na absorção interna (soma do investimento e do consumo). Todavia, este processo não é paulatino e enquanto isso, o governo usa investimentos estatais em infraestrutura e o mercado de crédito por meio do controle dos maiores bancos como alavanca de política econômica.

O consenso até recentemente era de que a manutenção do PCC no poder dependeria da manutenção de altas taxas de crescimento econômico. Mas, com a natural queda da produtividade à medida em que a migração campo-cidade desacelera, além da queda da força de trabalho já mencionada, manter o crescimento perto de dois dígitos fica muito mais difícil e a busca por atividade econômica forte a qualquer custo gera enormes distorções. A principal delas é o excesso de endividamento que há muitos anos gera preocupações nos analistas econômicos como shadow banking, ou passivos dos governos locais ou o mercado imobiliário.
As lideranças políticas chinesas reagem de forma relativamente rápida às mudanças dos ventos no cenário econômico e político global. Muitos apontam que a velocidade de implementação é uma grande vantagem de sistemas que apresentam maior dirigismo de cima para baixo. Após a grande crise financeira mundial de 2008, as autoridades experimentaram a vulnerabilidade de depender da demanda externa e do financiamento aos fluxos comerciais. Nesse sentido, passaram a dar mais peso em estimular a economia através do mercado de crédito com foco nos investimentos em infraestrutura e construção civil. Mas, este modelo também parece esgotado pelo forte aumento da alavancagem da economia.

A retórica americana em relação à China mudou radicalmente com a eleição de Donald Trump nos EUA, que havia prometido reduzir o déficit bilateral com o país que em 2017 atingiu quase US$ 375 bilhões [7]. A partir de 2018 a imposição de tarifas às exportações chinesas escalou para um conflito comercial com medidas do tipo “olho por olho”.

A mudança do mindset dos políticos e da sociedade americana com relação à China ficou patente mostrando que, além das questões comerciais, existe um conflito político-ideológico, comumente referido como “A nova guerra fria”. A resposta chinesa veio na forma do slogan “Dual Circulation”. Internal Circulation se refere à demanda doméstica e external circulation à demanda externa. Nesse sentido dual circulation é uma forma de priorizar ainda mais as fontes internas de crescimento, mas sem abrir mão das exportações como uma parte importante do crescimento. Neste conflito comercial, o que mais alarmou o governo chinês não foi a imposição de tarifas e sim as restrições impostas às empresas chinesas, principalmente o caso da Huawei, uma das maiores empresas de equipamentos de telecomunicações, que foi proibida de comprar chips de alta tecnologia de empresas americanas dos quais dependia fortemente. Desta forma, segurança nacional, que já era um objetivo importante, passou a ser uma questão de sobrevivência.

A pandemia da Covid-19 que teve início na cidade chinesa de Wuhan paradoxalmente atingiu muito mais outros países do que a própria China. O posicionamento das autoridades de tolerância zero com a Covid-19 com fortíssimas restrições a mobilidade provou-se uma boa estratégia já que os números de casos e mortes caíram e, após uma forte contração, a economia chinesa foi a primeira a recuperar o nível do final de 2019. A China foi a única das grandes economias a mostrar crescimento, de 2,3%, no ano de 2020.

A pandemia também teve um efeito bastante importante - provocou uma mudança do mix de demanda agregada no mundo com uma reorientação para bens de consumo em detrimento dos serviços e a China, como importante plataforma de produção, se beneficiou fortemente desta dinâmica.

Com o crescimento bem sustentado, podemos afirmar que o governo chinês se sentiu confortável para atacar outros problemas de cunho mais estrutural. Em geral, esse é o padrão de ação: quando existe conforto com o crescimento econômico, o foco passa a ser questões estratégicas, de gestão de riscos, endereçando desequilíbrios econômicos e financeiros que possam ameaçar a estabilidade social e a segurança nacional.

Como exemplo, no início deste ano, Xi Jinping declarou a erradicação da extrema pobreza, apontando que em oito anos de seu mandato quase 100 milhões de chineses saíram desta condição. Isso permitiu “dar um check” em outro dos objetivos fundamentais de seu governo. Agora, os esforços se voltam para a qualidade do crescimento e não a quantidade deste, atacando problemas como a desigualdade de renda, poluição e danos ao meio ambiente, além do excesso de alavancagem. Este é o ponto de partida para explicarmos os acontecimentos recentes.

O 14º Plano Quinquenal
Com inspirações soviéticas, desde 1953 elaboram-se planos econômicos que cobrem os próximos 5 anos articulando a direção estratégica e objetivos concretos das lideranças para a economia do país. O mais recente deles aconteceu em março deste ano. A grande diferença do 14º plano quinquenal com relação aos planos passados é a ausência de uma meta específica de crescimento econômico. Na nossa visão, esta é uma forte evidência de que o crescimento econômico não é a variável mais importante. Até existe um objetivo mencionado por Xi Jinping em 2020 de que se dobre o tamanho da economia até 2035, tornando-se “um país moderadamente desenvolvido”. Isto implica uma taxa de crescimento média de 4,7% a.a. até lá, taxa mais em linha com as estimativas do que seria o crescimento potencial do país.

As demais diretrizes do plano se alinham com os objetivos de longo-prazo de autossuficiência e sustentabilidade [8]. Destacamos o incentivo à inovação da indústria nos setores de tecnologia, novos materiais, veículos elétricos e inteligentes, e também as metas intermediárias que permitam atingir o objetivo anunciado de se tornar uma nação neutra em carbono até 2060.

A Campanha Antitruste e o slogan “Commom Prosperity”:
Desde o fim do ano passado, as agências reguladoras chinesas na área de defesa da concorrência ganharam musculatura. No início de novembro de 2020, houve o bloqueio da listagem das ações da Ant Financial, o braço fintech da gigante Alibaba. Em dezembro, a State Administration for Market Regulation (SAMR) iniciou uma ampla investigação sobre as práticas da Alibaba. Nos meses seguintes outras plataformas da internet também passaram a ser investigadas, o que gerou multas e mudança de comportamento para se enquadrarem. Em julho, foi a vez da Didi, a “Uber chinesa”, sofrer punição pela Cyberspace Administration of China (CAC) poucos dias após seu IPO em Nova Iorque. Desta vez, o motivo foi a não adequação da empresa à lei de segurança de dados que havia sido promulgada no mês anterior. Ainda em julho, um golpe fatal foi proferido numa parte do setor de educação privado que ficou proibido de gerar lucros. Neste caso, a intervenção aconteceu para coibir a prática das aulas de reforço além da escola pública que, segundo as autoridades, oneravam financeiramente demais os pais e ampliavam a desigualdade de acesso às oportunidades, tendo em vista que quem podia pagar teria maiores chances de se classificar bem no Gaokao (uma espécie de vestibular chinês).

Por que o governo chinês endureceu tanto as regras e punições para setores que nos últimos anos tiveram tanto sucesso e dinamismo e atraíram vultuosos capitais para a economia?

A resposta para esta pergunta está no slogan que tem figurado cada vez mais nos discursos de Xi Jinping e na imprensa estatal – “Common Prosperity”, que podemos traduzir como “prosperidade para todos”. Sempre preocupados com a estabilidade social, a diminuição da desigualdade de renda entrou de vez no radar. Este slogan está longe de ser novo - já em 1953 ele apareceu numa série de artigos do periódico Diário do Povo.

No início da década de 1980, Deng Xioping havia dito que a nação deixaria “algumas pessoas e algumas regiões ficarem ricas primeiro”, com o objetivo de dar ímpeto ao desenvolvimento econômico que eventualmente beneficiaria a todos. O objetivo da “Common Prosperity” é reduzir a disparidade de renda e riqueza.

O gráfico abaixo compilado pela The Economist mostra que o coeficiente de Gini, apesar de apresentar queda, está elevado, sendo inclusive maior que o dos EUA e outros países da OCDE (0 é igualdade perfeita e 1 concentração total).

 

A província de Zehjiang (onde fica a sede da Alibaba) foi escolhida para ser o modelo de demonstração para o conjunto de medidas relacionadas a estratégia. O governo quer incentivar uma melhor distribuição do que considera as três formas de renda gerada pela atividade econômica: a distribuição primária se refere aos componentes macroeconômicos da renda, ou seja, salários e lucros; a distribuição secundária se refere aqueles que decorrem da política fiscal, ou seja, taxação, transferências e subsídios: já a distribuição terciária se refere à filantropia.

Especificamente, ao liderar uma reunião sobre o tema, Xi pede “ajuste razoável nas rendas excessivas e encorajar os grupos e empresas de renda elevada a devolver mais para a sociedade”. Neste caso, empresas como Alibaba e Tencent anunciaram significativas doações de fundos e investimentos em causas sociais.

Já se especula quais seriam as próximas medidas. A eventual introdução de um imposto sobre propriedade imobiliária é atualmente a que vem ganhando a manchete dos jornais com o anúncio de projetos piloto nesse sentido.

O caso da Evergrande
A situação da gigante da construção Evergrande é o caso mais recente nos jornais neste momento em que escrevemos, mas é, na verdade, o reflexo de uma questão que já é bastante antiga e conhecida. Várias vezes ao longo dos últimos anos nos deparamos com a perspectiva de bolhas no mercado imobiliário chinês. Antes mesmo da crise de 2008 já liamos sobre cidades fantasmas e empreendimentos vazios. Em 2017, Xi Jinping havia dito que casas são para moradia e não para especulação. Para reduzir a alavancagem do setor imobiliário o governo introduziu no ano passado a política das três linhas vermelhas, na qual as construtoras teriam um limite em três indicadores de endividamento. Com isso, construtoras muito alavancadas, como o caso da Evergrande, estão com dificuldades em acessar o mercado de crédito e, portanto, precisam acelerar a venda de ativos para gerar receita, em um cenário de aumento da perspectiva de calotes diante de suas obrigações. A falta de confiança no setor gerou um colapso das vendas, visto que é comum a venda de propriedades antes de estarem completas.

É um problema autoinduzido e que está causando uma forte queda na atividade deste setor tão importante. Vai afetar negativamente a economia, mas acreditamos que a probabilidade de ser um evento que provoque uma crise financeira sistêmica na China e no mundo é baixa - as autoridades dispõem de alavancas para conter as reverberações negativas para outros setores. O presidente do banco central chinês disse recentemente que tem confiança de que os riscos são controláveis e que riscos sistêmicos podem ser evitados.
Mas, até o início de novembro, a ausência de amplas medidas de estímulo monetário (como corte das taxas de juros) sinaliza a disposição de sacrificar crescimento de curto prazo para reduzir problemas maiores lá na frente.

 

Ainda vale a pena investir na China?
Existem basicamente duas perspectivas distintas acerca dessas transformações. A primeira, mais pessimista, diz que Xi Jinping está engendrando uma guinada de volta às raízes Maoístas, concentrando o poder com um discurso nacionalista contra o capitalismo ocidental, e refletindo apenas o início de um novo paradigma que vai diminuir o setor privado. Isso porque, em sua visão, o setor privado teria se tornado muito poderoso e estaria ameaçando a legitimidade do PCC. Isto seria um enorme retrocesso para a China e para o mundo.
Outra perspectiva, mais otimista, é a de que as autoridades estão enfrentando, ainda que à sua maneira, os excessos do Capitalismo que em alguma medida assolam as principais economias do mundo, como desigualdade de renda e oportunidades, poluição e excesso de endividamento, sacrificando objetivos de curto-prazo para evitar riscos maiores de longo-prazo para a sociedade.
O maior ativismo e interferência do estado preocupa e estamos alertas. O risco é minar o espírito empreendedor que é o principal fator para a geração de inovações, valor e riqueza. Mas não acreditamos que a liderança chinesa tenha esta intenção.
Do ponto de vista prático, como a segunda maior economia do mundo, principal parceiro comercial de vários países desenvolvidos e emergentes (inclusive do Brasil), e com uma classe média com grande potencial consumidor [9] e maior do que toda a população dos EUA, ignorar a China não nos parece uma opção razoável quando pensamos em alocação de portfólio global a longo-prazo.
Como qualquer ativo de risco, a boa calibragem do tamanho da exposição é fundamental. Além disso, sabemos que em momentos de volatilidade e mudanças sempre aparecem boas oportunidades.

 

[1] “A China e seu Gigantismo”, leia mais em nosso site turimbr.com
[2]https://www.economist.com/finance-and-economics/2021/05/13/chinas-census-shows-its-population-is-nearing-its-peak
[3] “Governança e Instituições Políticas da China”, leia mais em nosso site turimbr.com
[4] Um bom resumo sobre as fases do desenvolvimento chinês está no capítulo 4do livro “The Great Demographic Reversal” e também no texto do RBA: https://www.rba.gov.au/publications/bulletin/2019/dec/pdf/long-term-growth-in-china.pdf
[5]https://www.foreignaffairs.com/articles/united-states/2009-05-01/state-capitalism-comes-agee https://foreignpolicy.com/2012/02/09/were-all-state-capitalists-
[6] “A Economia do Brasil e os Consensos de Washington e de Pequim”, leia mais em nosso site turimbr.com
[7]https://www.federalreserve.gov/econres/notes/feds-notes/did-the-us-bilateral-goods-deficit-with-china-increase-or-decrease-during-the-us-china-trade-conflict-accessible-20210621.htm#fig1
[8] https://research.nus.edu.sg/eai/wp-content/uploads/sites/2/2021/03/EAIC-26-20210311-1.pdf
[9] 2020 China Consumer Report - McKinsey &Co

2. Uma visão otimista sobre o futuro

Apesar dos acontecimentos recentes, a humanidade tem evoluído ano após ano e chegamos nos dias de hoje com vários fatos admiráveis que alicerçam nosso olhar positivo do que virá nos próximos anos. Como o filme muitas vezes conta a história melhor que a foto, é válido percorrer brevemente as conquistas importantes da trajetória da sociedade global até o presente, para então discorrermos sobre o futuro.
Desde a 2ª revolução industrial, a sociedade tem evoluído em diversos aspectos dentre os quais dois se destacam como os mais notáveis: i) aumento contínuo da expectativa de vida e ii) aumento do poder econômico das pessoas.

A melhora de expectativa de vida impressiona não apenas pela sua evolução, mas também pelos percalços enfrentados ao longo do caminho como, duas guerras mundiais, duas pandemias (gripe espanhola e Covid-19) e uma crise financeira global (2008).

As causas para o ganho da longevidade do ser humano são variadas de forma que é extremamente desafiador estabelecer uma relação causal precisa. Contudo, pode-se dizer que a combinação de: acesso a saneamento básico, vacinação, combate à subnutrição, desenvolvimento de novas drogas (ex.: antibiótico) e avanços socioeconômicos foram fundamentais para atingirmos tal resultado.

Ainda sobre o tema de saúde e diante do contexto sanitário atual, alguns dados também se mostram bastante interessantes. Mesmo que a gripe espanhola e a Covid-19 não sejam comparáveis devido às suas diferenças biológicas e contexto histórico, é possível colocar em perspectiva os números relativos. Enquanto a primeira matou de 1% a 5% da população mundial [1], a Covid-19 deverá ficar em um número inferior a 0,10% [2], ou seja, um número pelo menos 10x melhor que a pior pandemia dos últimos 100 anos. Se a comparação anterior não é totalmente justa, quando olhamos para resultados contínuos observamos um progresso claro como, por exemplo, o aumento de 15 pontos percentuais na taxa de sobrevivência do câncer nos Estados Unidos nos últimos 30 anos.

 

Outra conquista digna de celebração vai além da redução expressiva de pessoas vivendo abaixo da extrema pobreza ($1,90/dia), mas também do maior número de pessoas ganhando acima de $10/dia. No início do século XX, aproximadamente 75% (1,3 bilhão de pessoas) da população mundial vivia em situação de extrema pobreza, enquanto atualmente esse número é de aproximadamente 10% ou 733 milhões de pessoas [3]. A globalização combinada com melhorias na logística foram primordiais para que esses resultados se materializassem.

Saindo da ótica do passado, o que temos presenciado nas evoluções tecnológicas nos deixam ainda mais entusiasmados quanto ao futuro. Dentre elas: energia limpa, inteligência artificial (IA), IoT (Internet of Things/Internet das Coisas) e 5G são as que mais se sobressaem. A primeira não apenas pelo seu positivo impacto ambiental, mas também por tornar o futuro sistema com baixo custo marginal de energia. Sobre as outras tecnologias, é possível afirmar com certa razoabilidade que o impacto delas são positivos e significantes na produtividade e inclusão social ainda que seja difícil de estimar com precisão seus reais impactos.

Um dos graves custos do crescimento econômico foi o aumento expressivo da emissão de CO2 na atmosfera que, consequentemente, causam o aquecimento global e cujos maiores responsáveis são o carvão e o petróleo. [4]

 

Entendemos que a dificuldade da transição da matriz energética gera a necessidade de investimento, além de uma maior complexidade operacional que a intermitência da geração eólica e solar impõe ao sistema. Contudo, a diminuição de custos de produção e/ou aumento de produtividade da energia limpa endereça parte do problema de investimento – o avanço e desenvolvimento das baterias de lítio é a solução para a insegurança do sistema.

E por falar em baterias, chamamos a atenção para o tema de mobilidade terrestre (responsável por 12% das emissões globais [5]), no qual a eficiência do carro elétrico é superior ao carro à combustão interna de modo que o consumo de combustível é 3x menor [6]. Logo, a contínua diminuição do custo da bateria, a qual representa aproximadamente 30% do preço do veículo elétrico ao consumidor [7] , deverá acelerar o seu ganho de share das vendas globais de veículos dos atuais 7% . [8]

IA, IoT e 5G são exemplos de tecnologias em desenvolvimento com características transformacionais e seus impactos trazem consigo bastante incerteza diante da ampla abrangência que possuem. Mesmo assim, algumas estimativas demonstram o tamanho da importância dessas tecnologias. Em IA, a McKinsey estimou uma adição de 1,2% ao ano ou US$ 13 trilhões ao PIB global até 2030 oriundo de produtividade [9]. Em um raciocínio simplificado, a IA é o software, enquanto o IoT e o 5G são o hardware e a infraestrutura para que essa relação simbiótica consiga ser explorada em todo o seu potencial.

Talvez o produto de IA mais próximo da maioria das pessoas atualmente seja o chatbot e servirá aqui como um bom exemplo de benefícios diretos e potenciais usos. Um consumidor ao se comunicar com a área de suporte ao cliente de um banco ou operadora de saúde provavelmente conversará com um robô. Esse robô fará a primeira filtragem e poderá solucionar o problema sem intervenção humana. Dois benefícios mais aparentes são: i) aumento de produtividade mensurado de atendimento/pessoa e ii) disponibilidade de serviço parcial 24 horas/7 dias por semana. A evolução dessa tecnologia poderá abarcar usos mais complexos na medicina por exemplo, aumentando a produtividade e o acesso à saúde a um maior número de pessoas por meio da telemedicina.

Se o exemplo anterior abordou a IA na linguagem, um outro campo que tem evoluído é a IA da visão. O reconhecimento de objetos e faces através de câmeras permitirão em alguns anos/décadas a direção autônoma (ex.: Tesla) e compras presenciais sem a necessidade de humano e meio físico de pagamento (ex.: Amazon Go).

Por último, o IoT e o 5G permitirão ganhos de produtividade em praticamente todos os setores que no final do dia trarão maior capacidade, velocidade/menor latência e alcance em transferência de dados sobre as atuais tecnologias, ampliando, por exemplo, o uso de automação em atividades cada vez mais complexas que culminarão na indústria 4.0.

O ganho de produtividade e otimização de alocação de recursos são inerentes dessas evoluções tecnológicas (menor custo marginal de energia, IA etc.). Consequentemente, esses efeitos têm impactos de inclusão social e deflacionários, o que deve ajudar a alimentar o círculo virtuoso que o mundo tem à sua frente.

A humanidade atingiu feitos extraordinários até o momento atual apesar dos desafios que presenciamos nessa trajetória. Riscos geopolíticos (ex.: guerras, desglobalização), sanitários (ex.: pandemia), financeiros (ex.: endividamento, bolhas) e climáticos continuarão sempre a existir e é crucial monitorá-los. No entanto, a evolução tecnológica se mostra tão promissora que permitirá ampliar os ganhos que a sociedade obteve até o momento e, ao que tudo indica, em escalas ainda maiores. Com isso, o sentimento gerado não é outro senão otimismo quanto ao que o futuro nos reserva, mesmo sabendo da existência permanentes dos eventuais cisnes-negros.

[1] https://ourworldindata.org/spanish-flu-largest-influenza-pandemic-in-history
[2] https://covid19.who.int/ e https://www.census.gov/popclock/
[3] https://ourworldindata.org/extreme-poverty
[4] https://ourworldindata.org/emissions-by-fuel
[5] https://ourworldindata.org/ghg-emissions-by-sector e https://ourworldindata.org/co2-emissions-from-transport
[6] https://www.fueleconomy.gov/ (Tesla Model 3 vs. Corolla)
[7] https://www.bloomberg.com/news/articles/2020-12-16/electric-cars-are-about-to-be-as-cheap-as-gas-powered-models
[8] https://www.woodmac.com/press-releases/electric-vehicle-sales-to-vault-over-6-million-in-2021/
[9] https://www.mckinsey.com/featured-insights/artificial-intelligence/notes-from-the-ai-frontier-modeling-the-impact-of-ai-on-the-world-economy

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