Cartas

Carta 41

maio | 2024

1. O fim dos juros negativos e as perspectivas para o Japão

“There are four kinds of countries: developed, underdeveloped, Japan, and Argentina.”
“Existem quatro tipos de países: desenvolvidos, subdesenvolvidos, Japão e Argentina.”

Frase atribuída a Simon Kuznets, contemplado com o Prêmio Nobel de Economia em 1971

Em abril deste ano, observamos o primeiro aumento da taxa básica de juros do Japão em quase duas décadas, encerrando a política de juros nominais negativos e promovendo uma série de mudanças no arcabouço da política monetária implementado no país. A decisão ocorre em um contexto muito diferente do observado em outros países, que elevaram suas taxas de juros de forma expressiva até o ano passado e agora estão realizando cortes de juros (notadamente economias emergentes) ou avaliando o momento adequado para iniciar os seus respectivos ciclos de flexibilização monetária (em sua maioria países desenvolvidos).

Esperamos, ao longo desta carta, apresentar as razões pelas quais o Banco Central do Japão (Bank of Japan ou BoJ) se encontra em uma situação tão distinta de seus pares em outras economias e porque acreditamos que a decisão de abril pode se tornar um marco de uma mudança estrutural na dinâmica do país. Para este fim, iniciaremos a discussão com uma contextualização histórica ao longo das últimas décadas, a fim de explicar os desafios que o país vivencia hoje e as perspectivas que podemos vislumbrar.

 

Ascensão e queda da segunda maior economia global

Algum tempo após o desfecho da Segunda Guerra Mundial, a economia japonesa passou a crescer de forma expressiva, em um período que ficou conhecido como o “milagre econômico”, levando o Japão de um país destruído à segunda maior economia do mundo. Tamanho foi seu crescimento, que a economia japonesa chegou a equivaler a cerca de 10% do PIB mundial ao final da década de 1980.

 

A atividade chegou a desacelerar após a crise do petróleo de 1973, mas seguiu crescendo de forma relativamente estável, ainda que em menor patamar. Foi apenas após o estouro da bolha especulativa em 1989, que o crescimento econômico japonês realmente despencou. Com isso, a média do crescimento anual do PIB passou de 9,0% entre 1960 e 1974 para cerca de 4,5% entre 1975 e 1990 e 0,9% entre 1991 e 2023. O período que sucedeu o estouro da bolha ficou conhecido como a “década perdida” . (O termo “década perdida” foi inicialmente designado para se referir à década de 1990, mas posteriormente passou a ser utilizado para janelas mais longas, incluindo até mesmo o período recente.)

 

O estouro da bolha e a estagnação

Entre 1983 e 1989, o preço do Nikkei 225 (principal índice de ações do Japão) praticamente quadriplicou, assim como os preços no setor imobiliário. Estima-se que, em dado momento, o preço do Palácio Imperial de Tóquio tenha chegado a valer o equivalente a todo o estado da Califórnia nos Estados Unidos. Nesse contexto, se tornou comum a prática de Zaitech, em que empresas se alavancavam para realizar investimentos financeiros, a fim de elevar suas receitas para além de suas atividades principais.

As diversas explicações por trás da bolha especulativa são demasiadamente amplas para serem discutidas aqui em grandes detalhes, mas sabe-se que sua formação se deu em um contexto de aceleração da oferta de moeda e do crédito. Conforme ilustrado pelo gráfico abaixo, o crescimento anual do M2, que representa a quantidade de moeda em circulação em uma economia, aumentou de cerca de 8% em 1984 para cerca de 13% em meados de 1990. Isso pode ser associado à participação do Japão no Acordo de Plaza (1985) e no Acordo do Louvre (1987), que consistiram inicialmente em intervenções cambiais coordenadas com os Estados Unidos, com o objetivo de depreciar o Dólar devido ao elevado déficit na conta corrente americana. Posteriormente, houve tentativas infrutíferas de estabilizar o Iene, que seguiu a tendência de apreciação ao longo das décadas seguintes. Argumenta-se que a compra de dólares financiada pela criação de ienes a partir de 1987 pode explicar grande parte do aumento da base monetária no período.

Uma das principais explicações para a estagnação econômica durante a “década perdida” pode ser extraída das pesquisas do economista Richard Koo, que atribui o fenômeno a uma “recessão de balanços” (balance sheet recession). Segundo essa visão, o inchaço nos balanços das empresas, que saíram da bolha muito endividadas, teria feito com que o comportamento das firmas mudasse, privilegiando a minimização de dívida vis-à-vis a maximização de lucros. A principal implicação prática dessa mudança de preferências é que as companhias não se dispõem a tomar crédito, independentemente da taxa de juros vigente, reduzindo sensivelmente a eficácia da política monetária. Essa explicação pode ser entendida como uma extensão do conceito de armadilha da liquidez (liquidity trap), do renomado economista britânico John Maynard Keynes, onde a queda dos juros a certos níveis faz com que os agentes prefiram deter ativos mais líquidos (como a própria moeda) a títulos de dívida.

Não podemos deixar de citar que o país também enfrentou desafios importantes ligados ao mercado de trabalho, que incluíram o envelhecimento populacional, a baixa participação feminina na força de trabalho e a equação de formação de salários conhecida como Shushin Koyo (“emprego vitalício”, em tradução livre). Nesse sistema, fruto cultural do período pós-guerra, os empregados assinam contratos de longo prazo com as companhias e os salários crescem por senioridade (em detrimento de mérito), havendo pouco estímulo para mudanças de emprego, o que reduz a rotatividade e as pressões salariais cíclicas.

Entende-se que grande parte do crescimento e da inflação aquém do esperado no país pode ser explicada por esses fatores, além da prolongada apreciação cambial, o que teria contaminado as expectativas de inflação ao longo do tempo, criando as condições para que o país entrasse em um “equilíbrio contracionista”.

 

O laboratório econômico

Após o estouro da bolha, o PIB japonês levou quase uma década para registrar seu primeiro recuo (1998) , diante do choque causado pela crise asiática (1997), que afetou inicialmente os tigres asiáticos (Cingapura, Coreia do Sul, Hong Kong e Taiwan), mas se espalhou rapidamente pelo restante do continente. Nesse contexto, uma série de políticas econômicas não convencionais passaram a ser adotadas, incluindo pacotes de estímulo fiscal, a redução da taxa básica de juros a 0,15% (Zero Interest Rate Policy ou ZIRP) em 1999 e a primeira adoção a nível global do afrouxamento quantitativo (Quantitative Easing ou QE).

Em sua versão inicial, durante os mandatos de Hayami e Fukui, o QE consistiu em compras de títulos do governo japonês (JGBs) e títulos de dívida de curto prazo (conhecidos como “tegata”), elevando o balanço do banco de 115,3 para 152,3 trilhões de ienes entre março de 2001 e o mesmo mês de 2006. Posteriormente, durante o mandato de Masaaki Shirakawa, o BoJ realizou uma segunda rodada de QE, que foi de outubro de 2010 até março de 2013, elevando o balanço de ativos de 121 para 164 trilhões de ienes, mantendo as compras de JGBs e tegatas, mas passando a incluir também ETFs e REITs listados na bolsa de Tóquio. Essa segunda versão, apesar de compreender uma lista mais ampla de ativos, pode ser considerada menos intensa do que a anterior, ponderando que o presidente do banco se mostrava relutante a adoção desse instrumento.

Essas medidas seguiram falhando em resgatar a economia japonesa do equilíbrio contracionista de forma sustentável, até que teve início o segundo mandato do então primeiro-ministro, Shinzo Abe, em 2012. O conjunto de medidas implementadas por Abe, que ficou conhecido como “Abenomics”, se baseava no tripé (“three arrows” no termo adotado pelo governo): expansão monetária, política fiscal flexível e reformas estruturais.

No campo monetário, Haruhiko Kuroda, apontado para substituir Shirakawa em março de 2013, anunciou um ajuste no framework da política monetária, introduzindo o Quantitative and Qualitative Easing (QQE) e se comprometendo a dobrar a base monetária e atingir uma meta para o núcleo de inflação de 2% (vinda de 1%) em até dois anos (popularizando o termo “2-2-2 plan”). A despeito da mudança de nome, o QQE seguiu praticamente inalterado, com compras ainda concentradas em JGBs, mas com uma implementação significativamente mais intensa do que as versões anteriores. Posteriormente, em 2016, a autoridade também introduziu a política de juros negativos (Negative Interest Rate Policy ou NIRP) e a política de controle da curva de juros (Yield Curve Control ou YCC), a fim de reduzir a volatilidade da curva de juros, influenciando as taxas de longo prazo também através da sinalização e não apenas das compras de ativos.

No campo fiscal, a política flexível se referia a estímulos fiscais no curto prazo e uma eventual consolidação fiscal no futuro. Nesse sentido, o governo rapidamente adotou uma política expansionista, mas também se comprometeu a zerar o déficit primário até 2020, além de elevar o imposto sobre o consumo de 5% para 8% em abril de 2014.

As reformas visavam estimular o crescimento econômico e o investimento privado, e se deram a partir de planos anuais, sendo a sua primeira versão anunciada em junho de 2013. As estratégias incluíam diversas políticas que pretendiam elevar o produto potencial japonês, incluindo desregulamentações no mercado de trabalho – relaxando leis de imigração e incentivando a participação feminina na força de trabalho – e políticas industriais voltadas a setores específicos.

Por fim, muitos dos objetivos do governo não foram alcançados. A inflação e o crescimento econômico ficaram aquém da meta e a eliminação do déficit primário foi considerada inviável. Ainda assim, o quadro econômico melhorou, permitindo que o país saísse da recessão e da deflação. Por outro lado, o período também foi marcado por uma grande expansão do balanço de ativos do BoJ, que se aproximou de 780 trilhões de ienes ao final de 2023 (cerca de 125% do PIB), e algum crescimento adicional da já elevada dívida pública, que chegou a quase 1.287 trilhões (aproximadamente 207% do PIB).

Abe foi o primeiro-ministro que ocupou o cargo por mais tempo na história do país, servindo em quatro mandatos, sendo os últimos três consecutivos. Foi apenas em agosto de 2020, já próximo ao fim de seu quarto mandato, que Abe anunciou que pretendia renunciar por conta da deterioração de sua saúde (Abe seguiu como uma figura pública importante até ser assassinado em julho de 2022, aos 67 anos), sendo sucedido por Yoshihide Suga e, posteriormente, Fumio Kishida, que ocupa o cargo atualmente. A despeito de sua saída, as políticas estimulativas que marcaram seu governo seguiram presentes nos anos que o sucederam.

 

O desafio do Banco Central e a decisão de abril

Em 1939, ainda no contexto da Grande Depressão, o economista americano Alvin Hansen publicou um artigo apontando a possibilidade de um processo de estagnação da economia dos Estados Unidos, o qual ficou conhecido como “estagnação secular”. Anos depois, após a eclosão da crise do subprime (2007), esse conceito foi resgatado por economistas como o então secretário do Tesouro Americano, Larry Summers, que apontava para economias desenvolvidas como Estados Unidos, Europa e Japão como exemplos da dita estagnação, marcada por um produto persistentemente aquém do potencial, maior taxa de desemprego e inflação abaixo da meta.

Essa teoria perdeu força após o choque causado pela pandemia de Covid-19, que levou a uma expansão fiscal e monetária sincronizada entre quase todos os países. Desde então, a economia mundial experimentou um período de forte crescimento e aceleração da inflação, o que se mostrou uma oportunidade para o Japão.

Ainda na primeira metade de 2022, a inflação ao consumidor acumulada em 12 meses ultrapassou a meta de 2% pela primeira vez desde 2015, atingindo um pico de 4,3% em janeiro de 2023, mas voltou a cair daí em diante, alcançando 2,7% em março desse ano. O principal desafio do BoJ reside em manter a inflação um pouco acima da meta de forma sustentável, o que por sua vez, depende em larga medida de dois fatores: estabelecer um “ciclo virtuoso” entre preços e salários e ancorar as expectativas de inflação em linha com a meta.

Dados recentes indicam que a relação de repasse de preços para salários, bem como de salários para preços, está voltando a demonstrar algum pass-through desde o ano passado. A relação entre as duas variáveis perdeu bastante força na década de 1990 e praticamente se dissipou a partir de 2010. Uma evidência emblemática da reversão desse movimento foi o resultado das negociações salariais de primavera (“spring wage offensive” ou “Shunto”) , que devem resultar no maior aumento salarial em mais de três décadas.

Ao mesmo tempo, podemos observar algum progresso na reancoragem das expectativas de inflação, que subiram de forma expressiva entre 2021 e 2022 e agora parecem estar se estabilizando um pouco acima da meta, em linha com os objetivos do Banco Central. Isso é retratado no gráfico abaixo, que ilustra as expectativas de inflação dos agentes econômicos que respondem à pesquisa TANKAN, realizada pelo BoJ.

Diante desses avanços, a reunião de abril do BoJ resultou em uma alta de 10 pontos base na taxa de juros de curto prazo, encerrando a política de juros negativos e abandonando formalmente o controle da curva de juros (cuja banda de tolerância já havia sido alargada gradualmente ao longo dos últimos anos). Além disso, a autoridade monetária também declarou encerrada a compra de ETFs e REITs, mantendo apenas as compras de JGBs, a fim de minimizar a volatilidade na curva de juros, mas sem defender um nível específico para as taxas. Dito isso, as condições financeiras seguem bastante acomodatícias (estimativas de mercado apontam para uma taxa neutra na ordem de 1% em termos nominais) e devem ser mantidas dessa forma, a fim de garantir a continuidade da reflação.

A decisão foi bem telegrafada e se mostra condizente com uma normalização gradual da política monetária, o que pode reduzir a disparidade entre o país e o resto do mundo, caso o progresso atual prossiga.

 

Perspectivas para economia e mercados

As mudanças na política monetária do Banco Central do Japão marcam um ponto crucial na economia do país. A normalização gradual da política monetária traz tanto desafios quanto oportunidades para os investidores.

A primeira implicação do novo arcabouço monetário é a perspectiva de juros mais altos, o que afeta, entre outras coisas, o custo das dívidas de famílias, empresas e do já altamente endividado governo. Na prática, isso cria uma limitação ao quanto os juros podem subir sem colocar em risco a sustentabilidade da dívida pública.

Essas restrições à alta de juros, em meio a uma conjuntura de juros globais elevados por mais tempo, ajudam a explicar a performance do Iene, que já depreciou mais de 50% desde 2021. Do ponto de vista do Banco Central, o câmbio mais fraco pode ser entendido como um aliado, mas o mesmo não pode ser dito do Ministério das Finanças, que encara a depreciação exacerbada como um problema político.

Pode-se especular que alguma alta das taxas de juros, se acompanhada por uma redução da participação do BoJ nas compras de títulos públicos, também pode resultar em aumento da demanda doméstica por títulos do governo, em detrimento de investimento em dívida estrangeira. Vale lembrar que o Japão hoje é um grande credor internacional, chegando a deter mais títulos do governo dos Estados Unidos do que qualquer outro país.

A despeito dos desafios, o sucesso do Banco Central no combate à deflação tende a gerar ganhos para o mercado acionário, não apenas em termos nominais, mas também em termos reais, à medida em que o crescimento econômico é retomado. Alguns setores específicos podem se beneficiar ainda mais de uma normalização monetária, como os bancos, a depender da evolução dos spreads de juros.

Para concluir, o fim da era deflacionária no Japão também pode se tornar um caso de estudo importante para a ciência econômica, que se habituou a observar países enfrentando cenários de hiperinflação, mas coleciona poucas experiências bem-sucedidas no lado oposto do espectro.

 

Referências

Bank of Japan (2002). Market Operations under the Three-tier System.

Bank of Japan (2016). New Framework for Strengthening Monetary Easing: “Quantitative and Qualitative Monetary Easing with Yield Curve Control”.

Greenwood, John, (2017). The Japanese Experience with QE and QQE.

International Monetary Fund (2023). 2023 ARTICLE IV CONSULTATION.

Ito, Takatoshi; Hoshi, Takeo (2020). The Japanese Economy Second Edition.

Keynes, John M. (1930). Treatise on Money.

Keynes, John M. (1936). The General Theory of Employment, Interest and Money.

Koo, Richard C. (2011). Holy Grail of Macroeconomics: Lessons from Japan’s Great Recession.

Orphanides, Athanasios (2003). Monetary Policy in Deflation: The Liquidity Trap in History and Practice.

The Brookings Bulletin (1976). Understanding the Japanese ‘Economic Miracle’.

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2. Tensão geopolítica impulsionada por tarifas e políticas comerciais

O cenário global turbulento dos últimos tempos nos permite avaliar o panorama atual e entender melhor os riscos geopolíticos que enfrentamos, e dessa forma, mensurar a probabilidade de ascensão ou declínio dos riscos. Embora haja uma série de desafios, podemos focar especificamente nas políticas comerciais recentes para ter uma visão mais clara, apesar de entendermos que outros riscos importantes de guerras e conflitos permanecem presentes.

Diante disso, podemos citar alguns eventos relevantes ocorridos recentemente: 1) o início da guerra comercial entre China e Estados Unidos em 2018; 2) medidas de fomento à produção doméstica, como o Inflation Reduction Act e o CHIPS Act; e 3) a proibição da exportação de chips avançados de inteligência artificial dos Estados Unidos para a China.

Para compreender a atual tensão geopolítica entre os Estados Unidos e a China, é crucial considerar o histórico das relações comerciais entre essas duas potências globais. Desde a década de 1970, quando os laços comerciais foram restabelecidos após anos de isolamento, as economias americana e chinesa têm se tornado cada vez mais interdependentes. A China emergiu como uma força econômica dominante, impulsionada por um crescimento acelerado e uma mão de obra abundante, enquanto os Estados Unidos mantêm sua posição como a maior economia do mundo. Essas duas nações desempenham papéis fundamentais na economia global, com cadeias de suprimentos interconectadas e um volume significativo de comércio bilateral. No entanto, divergências políticas e ideológicas, juntamente com preocupações sobre práticas comerciais desleais e questões de segurança, alimentaram tensões crescentes.

A eleição de Trump em 2016 trouxe consigo um foco para a economia norte-americana. Um tema central do slogan político “Make America Great Again” era diminuir o déficit comercial com a China, o seu maior parceiro comercial até então. O meio para atingir tal objetivo foi através de aumento de tarifas para uma série de importações, cuja alíquota saiu de 4% para 19%, cobrindo 66% das exportações da China.

Com o passar dos anos, é possível medir a eficácia das medidas e logo surge o seguinte questionamento: houve a diminuição do déficit comercial entre China e Estados Unidos? Além disso, houve cumprimento por parte da China ao “Phase One agreement” – acordo assinado em fevereiro de 2020 para a China importar mais produtos de origem americana?

Analisando primeiramente o déficit entre os dois países, é possível concluir que sim. Esse número saiu de 418 bilhões de dólares (2% do PIB) em 2018 para 281 bilhões de dólares (1% do PIB) em 2023, como mostra o gráfico a seguir. Ainda que possa existir algum efeito decorrente dos níveis mais altos de estoque devido ao resquício da pandemia e seu impacto na cadeia global de comércio, é inegável que houve uma mudança de tendência após o aumento das tarifas.

Por outro lado, já se percebem os efeitos iniciais do friendshoring e do nearshoring, com países como Vietnã e México ocupando esse espaço. Um anúncio emblemático recente foi o da Apple, que relatou que 14% dos iPhones já são produzidos na Índia, o dobro em relação ao ano passado.

Em segundo lugar, o “Phase One agreement” mostrou-se ineficaz, uma vez que a China cumpriu apenas 58% do que foi estabelecido no acordo. Mesmo com o argumento de que a pandemia afetou sua implementação, não houve revisão ou negociação de novos parâmetros no governo Biden, de modo que as tarifas, pelo menos por enquanto, devem continuar em vigor nos níveis atuais.

Além da guerra comercial, a tecnologia tem sido um tema central nos últimos anos, podendo ser dividida em três partes: comunicação, energia verde e chips. Não por acaso, todas essas áreas se encaixam sob o argumento da segurança nacional, garantindo maior flexibilidade e celeridade para as ações do executivo.

O 5G foi o primeiro grande embate, iniciando um processo de banimento da empresa chinesa Huawei nos Estados Unidos em 2017, medida que permanece até hoje. O ápice dessa crise diplomática talvez tenha sido a prisão da diretora financeira da Huawei no Canadá, sob mandado de prisão dos EUA. No entanto, embora esse assunto pareça não ter mais desdobramentos significativos devido à falta de notícias recentes, a energia verde e os chips permanecem dinâmicos, representando mais um ponto crítico a ser monitorado no termômetro do ambiente geopolítico.

O Inflation Reduction Act (ou IRA) e o CHIPS Act são duas medidas relevantes aprovadas em 2022, indicativas do esforço do governo americano para tornar as cadeias de suprimentos de chips, carros elétricos, baterias e painéis solares mais independentes do resto do mundo. O IRA alocará 386 bilhões de dólares (0,6% do PIB por ano) ao longo dos próximos 10 anos para estimular o consumo e a produção de energia limpa. Já o CHIPS Act destinará 48 bilhões de dólares (0,2% do PIB por ano) nos próximos 5 anos em subsídios para construção, buscando reduzir a dependência de Taiwan e aumentar a participação dos EUA de 10% para 20% na produção global de chips de última geração. Um exemplo é a TSMC (Taiwan Semiconductor Manufacturing Company Limited é uma empresa multinacional taiwanesa de fabricação e design de semicondutores), que recentemente recebeu 6,6 bilhões de dólares (equivalente a 10% a 30% do investimento necessário para uma planta de chips de alta tecnologia) para construir uma planta em Phoenix, no estado do Arizona nos EUA.

Enquanto vemos esforços para fomentar a produção doméstica, também observamos medidas para restringir o acesso de outros países a recursos-chave. A maior evidência disso foi a proibição pelo Departamento de Comércio dos EUA de empresas líderes na indústria de semicondutores, como Nvidia, TSMC e ASML, de venderem chips e seus equipamentos de fabricação ligados à inteligência artificial.

Apesar do esforço dos Estados Unidos, a China tem avançado significativamente nesse campo, com duas empresas se destacando: Huawei e SMIC. A Huawei, um conglomerado chinês, tem se destacado como uma grande designer de chips, recentemente desenvolvendo um chip com desempenho equivalente ao chip de inteligência artificial A100 da Nvidia, lançado em 2020 e atualmente banido de ser vendido à China. Por sua vez, a SMIC, uma estatal chinesa fabricante de chips, concorrente da TSMC, é a 5ª maior fabricante global de chips e a maior da China. O fato de estar produzindo chips de 7 nanômetros indica que as sanções não têm sido eficazes, mantendo o intervalo tecnológico de 4 a 5 anos entre SMIC e TSMC inalterado.

Ainda em relação a China, é possível analisar qual tem sido sua postura e comportamento diante dos acontecimentos. As evidências revelam que o país asiático está mais preocupado com questões domésticas, como a sua economia (por exemplo, atingir metas de crescimento) e o seu desenvolvimento de capacidades em áreas estratégicas, como chips. Além disso, observa-se que a estratégia chinesa adotada no embate do comércio internacional parece ser mais de retaliação em relação às medidas americanas, adotando uma abordagem “olho por olho”. Além disso, é importante destacar Taiwan, que atualmente, representa uma incógnita significativa e o maior risco de cauda dentro do contexto geopolítico, seja pela sua relevância como maior produtora de chips avançados (68% da capacidade global) e seu papel central nas questões de política internacional envolvendo os três países.

A eleição presidencial americana, programada para novembro de 2024, adiciona mais complexidade ao assunto devido aos potenciais resultados distintos entre os candidatos. Embora seja prematuro, as pesquisas indicam uma disputa acirrada entre os candidatos Joe Biden e Donald Trump.Se por um lado Trump tem adotado uma postura agressiva em suas declarações de campanha, propondo uma tarifa de importação de 60% sobre bens chineses e 10% sobre bens de outros países, Biden, por outro lado, tem sido mais comedido até o momento, limitando o escopo de produtos sujeitos a aumento de alíquota ao aço e ao alumínio. Em relação à Taiwan, por enquanto, ambos os candidatos ainda não expressaram de forma enfática qualquer mudança drástica além do auxílio militar ao país.

Portanto, é possível afirmar que a próxima eleição presidencial americana é um importante fator de risco geopolítico a ser monitorado. Sob uma futura presidência Biden, a expectativa é de uma postura relativamente mais conservadora nas relações com a China, com a ressalva de que a corrida presidencial está bastante acirrada, o que torna uma mudança de estratégia bastante factível para se manter competitivo. Já em um governo Trump, as incertezas tendem a ser maiores, tanto em relação à escalada do risco geopolítico quanto ao potencial impacto na inflação (pesquisadores do FED estimam que a cada 25% de tarifa de importação, a inflação aumenta 0,4%).

Em suma, a guerra comercial entre China e Estados Unidos, iniciada em 2018, marcou uma mudança nas relações bilaterais, refletindo décadas de tensões crescentes devido a divergências comerciais, políticas e ideológicas. Paralelamente, as medidas de fomento à produção doméstica, como o IRA e o CHIPS Act, representam uma resposta estratégica dos EUA à concorrência global, especialmente da China, no setor tecnológico. Já a proibição da exportação de chips avançados para a China, ressaltou preocupações com segurança e soberania tecnológica. Olhando para o futuro, espera-se uma continuação da complexidade e volatilidade nas relações geopolíticas, com implicações importantes para o comércio internacional e o desenvolvimento tecnológico.

 

Referências:
Peterson Institute for International Economics: “US-China Trade War Tariffs: An Up-to-Date Chart” (2023), China bought none of the extra $200 billion of US exports in Trump's trade deal” (2022),

The Wall Street Journal: “A China-U.S. Decoupling? You Ain’t Seen Nothing Yet” (2024)

Committee for a Responsible Federal Budget: “What's In the Inflation Reduction Act?” (2022), “CBO Estimates "Chips-Plus" Bill Would Cost $79 billion” (2022)

Reuters: “U.S. actions against China's Huawei”, “Trump tariff plans spur talk of inflation 2.0” (2024)

NY Times: “Chipmakers Seek More Than $70 Billion in Federal Subsidies” (2024), “TSMC Will Receive $6.6 Billion to Bolster U.S. Chip Manufacturing” (2024),

CNBC: “U.S. curbs export of more AI chips, including Nvidia H800, to China” (2023)

Yahoo! Finance: “Tech war: Huawei's AI chip capabilities under intense scrutiny after market leader Nvidia taps it as potential rival” (2024)

Nikkei Asia: “The great nanometer chip race” (2023)

Fivethirtyeight: Presidential elections polling averages
Federal Reserve Bank of San Francisco: “Inflationary Effects of Trade Disputes with China” (2019)

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