O ano de 2021 marca o início de uma nova década, a terceira do século XXI, de modo que nos parece um momento propício para rever os principais acontecimentos da década passada (2011-2020) que impactaram os mercados financeiros globais. Isso nos permite chegar a um ponto de partida para pensar quais as possibilidades desta nova década que se inicia. A frase “A história não se repete, mas frequentemente rima”, atribuída ao escritor americano Mark Twain cabe bem aqui. Prever o futuro é uma tarefa difícil e, por definição, os eventos de maior impacto nos mercados são imprevisíveis a priori, mas a análise retrospectiva nos ajuda a calibrar o conjunto de possibilidades e melhor nos preparar para o que está por vir.
A década 2011-2020 foi forjada a partir das consequências da Crise Financeira Global (CFG) de 2008-2009. Esta foi desencadeada pelo estouro da bolha imobiliária americana e seus impactos no sistema bancário mundial. Foi um credit-crunch em grande escala e suas reverberações foram sendo sentidas ao longo de todo este período, mas principalmente na sua primeira metade.
Nesta carta vamos rever os principais eventos que marcaram esta época e refletir sobre a década atual que se inicia. Não existe aqui a pretensão de citar todos os eventos de todos os anos da década, mas sim destacar aqueles que julgamos terem produzido maior impacto na “psique” dos investidores e formuladores de política econômica e com consequências mais persistentes nos preços dos ativos financeiros.
2011- 2012: Reverberações da Grande Crise
O ano de 2011 foi marcado por eventos geopolíticos, como a primavera árabe, e desastres naturais, como o terremoto e tsunami que atingiram Fukushima no Japão. No início do ano, uma onda de protestos contra o alto desemprego, por melhores condições de vida e mais democracia se espalhou por vários países do Oriente Médio derrubando regimes que estavam no poder há muitos anos. O preço do petróleo subiu mais de 30% até o início do segundo trimestre do ano, refletindo o maior risco político na região e, desta forma, coroando a recuperação do preço desta commodity após as mínimas atingidas em dezembro de 2008. Todavia, para os mercados financeiros, o impasse político nos EUA com relação ao aumento do teto da dívida (Debt Ceiling) foi o acontecimento mais significativo. Em 5 de agosto de 2011, a agência Standard and Poor’s (S&P) global cortou a nota de crédito do governo americano de AAA para AA+, considerando que o plano de consolidação fiscal apresentado pelo governo e aprovado pelo Congresso como condição para o aumento do limite da dívida não seria suficiente para estabilizar a dinâmica de médio prazo da dívida pública. Isso gerou forte turbulência nos preços a partir de agosto. O S&P500 terminou estável no ano após apresentar queda de aproximadamente 20% conforme mostra o gráfico abaixo.
No outro lado do Atlântico, o Banco Central Europeu (BCE) cometeu um erro de política econômica e subiu a taxa de juros duas vezes no primeiro semestre. Era a primeira tentativa de normalizar a taxa de juros após a grande crise1 mas foi obrigado a reverter o movimento por conta do aperto das condições financeiras com o aumento dos spreads dos títulos de governos como Grécia, Itália, Espanha, Portugal e Irlanda. Ainda em decorrência dos excessos cometidos no pré-CFG, os déficits e a dívida desses países apresentaram forte elevação na esteira do estouro de bolhas imobiliárias, de crédito e resgates ao sistema financeiro. De fato, a Grécia já havia negociado um pacote de ajuda com o Fundo Monetário Internacional (FMI) no ano anterior e sua dívida ia deixando as mãos do mercado e passando para organismos oficiais.
A crise europeia se tornou mais aguda em 2012. A Zona do Euro teve o primeiro grande teste da sua união monetária quando os yields dos títulos do tesouro destes países se elevaram fortemente com investidores exigindo mais prêmio para os carregarem temerosos da redenominação destes em moedas nacionais. A perspectiva do Grexit (potencial saída da Grécia da Zona do Euro), já era algo que gerava algum nervosismo nos mercados, mas a alta dos yields de países como Itália e Espanha, ilustrados no gráfico abaixo, representava outro patamar nessa preocupação, não só pelo tamanho destas economias mas também pelo fato de seus respectivos sistemas bancários deterem uma boa parte desses títulos.
A crise só foi debelada quando Mario Draghi, então novo presidente do BCE fez um discurso em julho no qual afastou de vez a dúvida que ainda pairava sobre o compromisso da autoridade monetária com a sobrevivência da união monetária. Nesse discurso, Draghi proferiu a famosa frase “O BCE está pronto para fazer o que for necessário para preservar o Euro. E acreditem, será suficiente.” De fato, essa sua fala foi fundamental e a partir daí observamos uma trajetória de queda e maior convergência dos prêmios de risco entre os países.
2013-2014: Taper Tantrum e preço do petróleo em queda livre
Já em 2013 o grande evento foi o taper tantrum, quando Ben Bernanke, então presidente do FED sinalizou, em maio, que em algum momento a autoridade monetária reduziria as compras de títulos para seu balanço que haviam sido feitas ao longo de três programas de afrouxamento quantitativo2, sendo que o último programa havia sido lançado em setembro do ano anterior.
Conforme ilustrado no gráfico abaixo a taxa da treasury de 10 anos aumentou aproximadamente 150 pontos base até o início de setembro. Esse movimento desencadeou queda nos ativos de risco de países emergentes, principalmente aqueles que tinham alto déficit na conta corrente ou passivos em dólares, os cinco frágeis, Indonésia, África do Sul, Turquia, Índia e infelizmente, o Brasil.
Em 2014 assistimos à forte queda no preço do petróleo a partir de julho. Um elemento importante da década foi o fato dos EUA se tornarem autossuficientes em petróleo. A tecnologia do hidraulic fracking permitiu a exploração das reservas de xisto. Uma taxa de juros baixa estimulou uma enxurrada de capitais para empresas de exploração de petróleo que se tornaram muito lucrativas com o preço do barril elevado. Nos mercados de commodities se diz que a cura para preços altos é o próprio preço alto pois este estimula a oferta.
A maior oferta do petróleo de xisto nos EUA combinada a queda de demanda com a desaceleração
econômica na China levou o barril do petróleo de pouco mais de US$ 110 em meados de 2014 para abaixo dos US$ 30 no início de 2016. No gráfico abaixo podemos ver que este período coincidiu com forte apreciação do Dólar americano que, medido contra o índice DXY, apresentou alta superior a 20%.
Na Europa, um novo governo venceu as eleições na Grécia prometendo uma solução para a forte crise econômica do país a partir de uma plataforma anti-austeridade. Diante disso convocou- se um referendo no qual questionava a população se esta aprovaria as condições impostas pela Troika – Comissão Europeia, FMI e BCE – como contrapartida à extensão de um novo pacote de ajuda ao país. O referendo era interpretado pelos investidores como uma escolha da população pela manutenção ou não do Euro e essa instabilidade agravara a fuga de capitais forçando a adoção de feriados bancários e restrições a movimentação de recursos no país. Apesar do referendo não ter aprovado as referidas condições impostas, o projeto de permanência na zona do Euro acabou por prevalecer.
Mas as turbulências nos mercados em 2015 vieram, principalmente, do outro lado do mundo. Os ciclos econômicos na China costumam ser mais curtos, marcados por booms e busts. A valorização do USD contribuía para o aperto das condições financeiras no país já que sua moeda era administrada de forma a manter uma certa paridade em relação a moeda americana. Contudo, em meio a temores de um hard-landing a China permitiu uma desvalorização do Renminbi a partir de agosto, com sua moeda saindo de 6,20 por US$ para quase 7,00. Essa política fez parte de um conjunto de medidas que incluiu expansão de crédito para famílias e empresas.
Nos EUA, em dezembro de 2015, com a taxa de desemprego em 5%, o BC americano finalmente tirou a taxa de juros de zero após sete anos, um período muito mais longo do que era inicialmente esperado atestando a enorme dificuldade de retirada de estímulos após uma grande crise financeira.
No início de 2016 a atividade econômica global começou a se estabilizar e o USD americano parou de se apreciar. O mercado especulou que houve um acordo tácito na reunião do G20 de fevereiro daquele ano para frear a alta do dólar. No entanto, as principais surpresas do ano foram de caráter político. No Reino Unido, o referendo convocado pelo então primeiro-ministro David Cameron teve como desfecho a vitória do grupo que apoiava o Brexit. Isto detonou um processo de negociação com a Comunidade Europeia sobre os termos do “divórcio” que se arrastou por anos. Nos EUA, Donald Trump, um completo outsider da política tradicional americana, venceu Hilary Clinton na disputa para a presidência dos EUA. Em meio a toda essa incerteza econômica e política, o FED somente continuou o processo de subida de juros em dezembro de 2016, com uma alta para uma faixa entre 0,50% e 0,75%.
2017-2018: Crescimento sincronizado global e o início da Guerra Comercial
2017 foi um ano de surpresas positivas com o crescimento global sincronizado. Havia muita preocupação na Europa com as eleições presidências e parlamentares na França. A eleição de Trump e o Brexit trouxeram à tona questões como o populismo, nacionalismo e protecionismo. Emmanuel Macron venceu Marine Le Pen prometendo reformas econômicas com discurso pró união europeia e amenizando riscos políticos na região. Nos EUA, o governo Trump implementou um corte de impostos, afrouxando a política fiscal. Uma das principais medidas foi o corte de impostos para as empresas, que passaram a pagar uma taxa única de 21%. Todos esses elementos foram positivos para os ativos de risco, em particular para os mercados acionários norte-americanos. Outro aspecto relevante foi que os investidores começaram valorizar as virtudes das novas tecnologias centradas na geração e na interpretação e uso de dados permitida pela revolução digital – E-Commerce, Social Media, Cloud Computing e a Internet das Coisas5. Uma evidência anedótica disso pode ser vista nas sempre inspiradoras capas da revista The Economist. Alguns exemplos do ano de 2017 estão ilustrados abaixo.
Em 2018, o FED aproveitou para acelerar o processo de normalização da taxa de juros. A taxa de desemprego americana atingiu 3,8%, o nível mais baixo desde a grande crise e, apesar da inflação não ter respondido da forma esperada, o comitê estava demostrando uma preocupação em se afastar ainda mais do juro zero e desta forma abrir espaço para queda de juros no futuro sem que o lower bound fosse atingido. Além disso o FED demostrava alguma preocupação que os juros baixos e o elevado tamanho de seu balanço pudessem estar inflando preços de ativos de forma artificial. Nesse sentido, o BC Americano começou a rolar apenas parcialmente os títulos que havia comprado nos referidos programas de afrouxamento quantitativo e, portanto, seu balanço total foi sendo reduzido de maneira gradual.
Ainda em 2018 assistiu-se ao início da guerra comercial entre EUA e China com a elevação das tarifas de ambos os lados e ameaças de imposição de tarifas para outros países. Isso trouxe enorme incerteza nas cadeias de suprimentos globais, com consequente queda dos investimentos e arrefecimento na atividade industrial global. Outro evento que vale mencionar aqui é que Jerome Powell, presidente do FED, sinalizou em entrevista no início de outubro considerar que a taxa de juros ainda estava longe da taxa neutra. Foi a gota d´água que produziu forte aumento da volatilidade e correção nos preços dos ativos de risco no fim do ano.
2019-2020: Fim da longa recuperação econômica?
Todo esse ambiente gerava o questionamento se o ciclo de expansão econômica e o longo bull market do mercado acionário americano estariam no fim. Os bull markets não morrem de velhice. Em geral são mortos pelos bancos centrais ao exagerarem no aperto das condições financeiras, pelo estouro de alguma bolha de ativos mais sistêmica ou por algum choque externo. Em 2019 assistimos com apreensão o fato da curva de juros se inverter sugerindo aperto excessivo. O diferencial entre os títulos do tesouro americano com vencimento em 10 anos e o com vencimento em 3 meses ficou sustentadamente negativo a partir de meados do ano. Com esse pano de fundo, o BC americano fez três cortes caracterizados como “preventivos” de 0,25% no segundo semestre ainda que o PMI industrial global estivesse cruzando para cima de 50, o que marca expansão da atividade econômica.
Por fim, chegamos a 2020 – ano da eclosão da pandemia do Covid-19 e forte recessão global. Assistimos a respostas de política monetária e fiscal ao redor do mundo ainda mais fortes do que aquelas implementadas após a CFG. Por ser muito recente, 2020 dispensa uma revisão mais detalhada aqui, mas é o ponto de partida precípuo para compreendermos o que pode vir pela frente.
Reflexões sobre a década atual e seus desafios:
Nossa década atual também se inicia a partir de uma crise, mas a diferença fundamental está na natureza desta. Foi uma crise sanitária cujo precedente mais recente foi há pouco mais de cem anos atrás. As crises e recessões globais mais recentes foram de caráter econômico e financeiro, resultado de excessos que acabaram em estouro de bolhas, ações de tecnologia no início da década de 2000 e, imobiliária e creditícia como já apontado, no caso da década passada. Conforme comentamos, a recuperação deste tipo de crise é mais demorada na medida em que os excessos são “digeridos”.
A primeira reflexão que decorre disso é a de que, com a vacinação ganhando tração globalmente, a recuperação econômica acontecerá muito mais rapidamente. Essa hipótese ganha ainda mais força quando considerarmos a rápida e enorme resposta de política econômica dos governos ao redor do mundo. Outra questão que decorre disso é que talvez tenhamos um ciclo econômico mais curto. Um exemplo disso é que já existe um certo nervosismo nos mercados financeiros sobre o que vai acontecer quando estes estímulos forem retirados. Será que veremos outro taper tantrum como o de 2013?
Há também uma reflexão de caráter menos conjuntural. A política monetária foi a principal alavanca de resposta econômica nas referidas crises anteriores. A política monetária não convencional dos afrouxamentos quantitativos é agora completamente convencional. Porém, os principais bancos centrais já vinham alertando para a menor capacidade de resposta em caso de outra grande crise e apontavam para a necessidade de algum apoio da política fiscal. No mundo desenvolvido conjecturas como a armadilha da liquidez e estagnação secular têm ganhado influência no grupo de economistas na interseção entre formuladores de política econômica, centros acadêmicos e think tanks. Uma das prescrições desse pensamento é um papel mais ativo da política fiscal através de gastos dos governos e nas taxas e formas de impostos.
A visão dominante é a de que a inflação foi totalmente controlada e os problemas mais prementes são o baixo crescimento econômico e, principalmente, a desigualdade de renda. A política monetária vai continuar dando suporte, mas é a política fiscal que deve desempenhar o papel preponderante. Nesse sentido, a crise sanitária marcou uma mudança importante de paradigma já que promoveu o incentivo para a passagem da teoria para a prática.
Vejamos o que está acontecendo neste momento nos EUA. O FED anunciou uma mudança em seu arcabouço implementando o FAIT (Flexible Average Inflation Targeting) segundo o qual busca uma meta de inflação moderadamente acima dos 2% por algum tempo de modo a compensar pelos períodos em que a inflação ficou abaixo dessa meta. Nos seus discursos recentes os membros do comitê de política monetária vêm enfatizando a necessidade de não se retirar os estímulos de forma prematura sinalizando um peso maior para a melhora do mercado de trabalho visando aliviar a desigualdade de renda.
O Governo Biden após executar uma ajuda fiscal de US$ 1,9 trilhão de combate a pandemia propõe um pacote de investimentos em infraestrutura de mais de US$ 2,3 trilhões. Em um discurso recente para o Congresso americano, Biden ressaltou a importância do papel do governo nesse tipo de investimento. Esse discurso é sintomático da mudança dos ventos Na Europa o fundo conjunto de recuperação marcou um passo adicional em direção à maior união fiscal, enquanto na Itália, o mesmo Mario Draghi, que como descrito anteriormente contribuiu para salvar o Euro, é hoje o primeiro-ministro convocado para desenhar e implementar os gastos dos recursos que o país receberá desse fundo de recuperação.
Um desafio que deve aparecer ao longo desta década é sobre como financiar esse aumento de gastos públicos e de fato, qual o limite da dívida pública. Enquanto os juros no mundo estiverem baixos, o financiamento desta dívida pública é facilitado. Mas e quando os juros subirem? E a inflação? Fatores como tecnologia, demografia, globalização, diminuição da sindicalização e metas de inflação contribuíram para uma queda estrutural da inflação. Mas, com a quantidade de estímulos monetários e fiscais e reversão ou mesmo diminuição do ritmo em alguma dessas tendências, podemos assistir uma elevação mais sustentada da inflação.8 No mínimo podemos ter alguns sustos para os mercados já que tanto a renda-fixa quanto a renda variável se beneficiaram da queda e da maior previsibilidade da inflação. Ainda nesse tema, existem dúvidas sobre como os BCs se comportarão se a inflação subir mais do que o esperado.
A partir de uma perspectiva mais estrutural, os anos 20 do Século XXI trazem analogias interessantes com a década de 1920 nos EUA, que ficou conhecida como os “Roaring Twenties”. De fato, os anos 20 do século passado também se seguem a grande pandemia da gripe espanhola de 1918 que coincidiu com o último ano da primeira guerra mundial. Após esses acontecimentos traumáticos, existia um sentimento geral de querer viver como se são houvesse o amanhã. O romance “O Grande Gatsby” de Scott Fitzgerald relata esse zeitgeist. Outro paralelo importante que podemos destacar é o ambiente ebulição tecnológica. Na década de 1920 tivemos a consolidação da indústria automobilística que estava revolucionado a mobilidade e a introdução comercial do rádio, o primeiro meio de comunicação de massa. Essas inovações trazem consigo a emergência de toda uma cadeia de produtos, serviços e novos modelos de negócios.
Vale lembrar que os “roaring twenties” acabaram por provocar excessos e uma enorme bolha acionária que ao estourar em outubro de 1929 desencadeou a grande depressão. Contudo, não acreditamos que estamos fatalmente destinados a esse mesmo desfecho apesar de nos parecer um ambiente propício para a formação de bolhas especulativas.